Por Renate Krieger
Mandy Gasser é magra. Tem a pele bronzeada, os cabelos louros clareados pelo sol e os músculos dos braços esculpidos pela prática de Kitesurf, um esporte cuja paixão ela divide com o marido. O tom de voz calmo a surpreende: “Nunca pensei que teria tanta paciência com os meus filhos – minha mãe faz questão de me lembrar que sempre fui impaciente”, riu a alemã, ao dar entrevista ao Mães no Mundo.
Poucos minutos depois de nos conhecermos, num estacionamento para trailers e motor-homes em Dakhla, no Saara Ocidental, a mulher de quarenta anos não fez rodeios para dividir as lembranças do parto traumático do segundo filho – Nelio, de um ano e meio, nasceu em Santander, na Espanha, perto da cidadezinha para onde a família se mudou há cinco anos e trabalha com aluguel de vans para acampar.
“Uma amiga alemã tentou me avisar quando ficou sabendo que eu queria ter o Nelio na Espanha. Me disse que, se eu tivesse o filho no hospital, deixaria meus direitos de mulher e de mãe na porta”, relata, enquanto lava a roupa da família num recipiente de plástico em frente à van azul-clara em que viaja com o marido, os dois filhos e a cachorra.
“Eu não consegui me dar conta da dimensão do que ela estava me dizendo até o momento em que fui ao hospital”, continua a alemã, que quis ter o filho em casa.
Abaixo, o depoimento de Mandy Gasser, mãe da Luna-Malu, de 4 anos, e do Nelio-Elia, de um ano e meio.
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“Antes de ter o Nelio, já tinha engravidado na Espanha e pude ter uma ideia do que é [o pré-natal e o pós-parto] por lá. Eu queria confirmar a gravidez, mas simplesmente não encontrei um ginecologista [pelo sistema público de saúde]. Pelo que entendi, é por isso que as mulheres vão aos hospitais – a não ser que se tenha um médico particular.
“Fui parar num corredor cheio de mulheres. Uma após a outra entra na salinha para fazer o ultrassom. Na verdade, você é um número.”
Então também fui ao hospital para confirmar a gravidez por meio de um exame ou ultrassonografia. Fui parar num corredor cheio de mulheres. Uma após a outra entra na salinha para fazer o ultrassom.
Na verdade, você é um número. Fizeram o ultrassom, mas eu não podia ver o que tinha no monitor. Só me disseram quando era a consulta seguinte e que, naquele momento, também não dava para ver nada.
Na segunda consulta, a médica disse: ‘ué, cadê o embrião?’. Me senti abandonada. Não sabia o que pensar com aquela frase. Em seguida, ela me disse que não conseguia ver o embrião, mas que eu ainda estava grávida. Não entendi nada. Eles também nunca me deixavam ver nada no ultrassom. Você tem que acreditar no que te dizem.
Quando fiquei sabendo da gravidez do Nelio, já não quis fazer muito do pré-natal na Espanha [por causa do tratamento na gravidez anterior]. Pensei muito e decidi fazer um parto caseiro – a Luna-Malu, minha mais velha, nasceu numa casa de parto na Suíça. Eu sabia que queria me preparar muito para o parto caseiro e queria depender o menos possível do sistema de saúde espanhol, ir a médicos etc.
Decidimos ter o Nelio na Espanha porque, apesar de eu ter a possibilidade de ir à Suíça para o nascimento dele, eu não queria separar a família. Ele nasceu em junho, em plena temporada, e o Marco [meu marido] tinha que trabalhar.
É difícil organizar partos caseiros na Espanha. A maioria das pessoas não tem como pagar uma prestação de serviço privada que custa entre 2.500 e 3.500 euros. Na Suíça, agora pelo menos uma parte dos custos é paga pelo plano [público] de saúde. Também é dificílimo encontrar uma parteira. Encontramos um mapinha na internet, e só existem entre cinco e sete parteiras que realmente realizam partos, pelo que me lembro.

A gravidez do Nelio já foi complicada porque sempre tinha alguma coisa dramática durante as consultas. Na Suíça, fui a uma consulta e disseram que ele tinha uma mancha branca no coração e que tínhamos que checar. Eu não queria, porque não me importava se ele teria algum tipo de deficiência. Mas como disseram que talvez fosse necessário operá-lo, fizemos um screening de órgãos. Ele também tinha uma artéria umbilical única. Não sei se todas essas informações negativas tiveram alguma influência [no parto, que acabou sendo uma cesárea].
O parto
As contrações vinham a cada cinco minutos, praticamente desde o início. Eu tentei ajudar o Nelio a nascer em casa durante 24 horas. Mas, de alguma forma inconsciente, eu acho que sabia que não iria dar certo. Em algum momento, eu quis interromper e ir para o hospital. Partiu de mim.
O E. [médico que concordou em fazer o parto em casa] ainda sugeriu que eu dormisse, que descansasse, mas como as contrações eram muito frequentes, eu não conseguia. A bolsa ainda não tinha rompido. Mas o E. me examinou mais uma vez, disse que o bebê poderia vir a qualquer hora, mas que ao mesmo tempo eu não tinha muita dilatação. Decidimos ir ao hospital.
Chegamos ao hospital e o pesadelo, para mim, já começou na recepção – demorou para sermos atendidos.
“Foi como um filme ruim. A salinha onde eu estava parecia um açougue velho e sujo.”
Daí, mandaram que eu sentasse numa cadeira. Eu não queria, me recusei, mas voltaram a mandar. Obedeci. Fizeram a triagem, me examinaram, começaram a falar da peridural. Eu sou totalmente contra anestesia durante o parto porque acho que aí não é mais um parto natural. Mas eu tinha conversado com o E. em casa e concordamos que talvez fosse a nossa única chance de estimular as contrações para que fizéssemos um parto natural.
Por isso, mesmo totalmente relutante, assinei a autorização para a peridural. Foi como um filme ruim. A salinha onde eu estava parecia um açougue velho e sujo. O Marco reparou, disse que poderiam ter limpado. Não tinha nenhuma dedicação posta ali, nenhum amor. Quando abriam a porta, qualquer pessoa passando no corredor podia olhar entre as minhas pernas.
Quando aplicaram a anestesia, eu já estava achando tudo péssimo. Senti um calafrio nas costas e ainda fizeram um furo no meu ombro, onde colocavam medicamentos a toda hora. Eu perguntava o tempo todo: ‘o que é isso? O que é isso?’ Levei seis semanas para expelir tudo o que me injetaram.
Como eu não estava sentindo mais tão bem as contrações após a peridural, achei que eles [a equipe médica] fossem me ajudar, me dizer quando eu tinha que fazer força. Nada. Simplesmente saíram da sala depois que aplicaram a anestesia. Ainda bem que o E. estava comigo e disse: “vem, Mandy, vamos tentar!”, para que eu pudesse fazer força.
“Quando abriam a porta, qualquer pessoa passando no corredor podia olhar entre as minhas pernas”
Vi que as contrações vinham a cada poucos segundos, mas o bebê não saía. Foi aí que me dei conta que o parto acabaria sendo uma cesariana. Mas o processo todo sempre acabava sendo adiado. Eu estava angustiada, na minha cabeça a pergunta ‘o que mais vão fazer?’ se repetia a toda hora. Me senti pressionada. Por exemplo, disseram que tinham que romper a bolsa artificialmente. Quando o fizeram, disseram que eu tinha mais quatro horas. E eu só pensava: ‘e depois? E depois?’ Eles não me explicavam nada. Poderiam ter falado: ‘vamos tentar fazer isso, depois aguardamos para ver se acontece aquilo.’
O Marco também não sabia de nada porque não pôde entrar comigo, eu estava sozinha. Pelo menos o E. pôde explicar muito do que estava acontecendo ao Marco.
Mas, como sempre, do nada, disseram que tinham que fazer um exame de sangue do Nelio, tirando sangue da cabeça, porque tinha alguma coisa errada com ele, o bebê não estava mais se mexendo. Eu pensei que, como as contrações vinham a cada poucos segundos, ele nem podia mais se movimentar porque tinha muita pressão em cima. Mas falei: “ok” [tem a expressão conformada].
Essa coleta de sangue, para mim, foi o inferno na terra. Não me explicaram como iriam fazer o teste. Só vi uma agulha gigantesca que colocaram entre as minhas pernas. E meu corpo tremia, não foi nada suave para o bebê.
Quando vi que o coraçãozinho do Nelio começou a bater muito rápido depois da coleta, finalmente consegui reagir – antes, passando de um choque para o seguinte e com fortes contrações, assumi rapidamente o papel de vítima. Mas quando vi aumento da frequência cardíaca do Nelio, eu disse: ‘Chega!’
Novamente, me disseram que talvez fosse a hora de me levar para a sala de parto. Em seguida, disseram que ainda podíamos esperar duas horas. Mas logo depois disseram que iam fazer a cesárea. O Marco levantou, mas não o deixaram ir junto. De repente, eu fui levada para uma sala enorme, com um monte de gente, eles estão lá para cortar a sua barriga e retirar o seu bebê. Eu estava presa, não podia tirar o tubo dos medicamentos e por isso não conseguia me mexer direito.
Eu só chorava. Ainda escutei de alguém: ‘porque você está chorando? Teu bebê vai nascer logo!’. Gritei que não queria uma cesárea, que nunca quis cesárea. Meu corpo tremia. Eu não senti como me cortaram, como tiraram o meu bebê de dentro de mim, mas fiquei só com essas imagens na cabeça. Foi horrível.
“Ainda escutei de alguém: ‘porque você está chorando? Teu bebê vai nascer logo!'”
Em algum momento do parto, como eu disse, ficou claro que o Nelio viria por cesárea, e também estava claro para mim que eu não iria gostar. Mas daquele jeito… com tantas pessoas à minha volta, gritando desordenadamente ‘que grande! Que grande!’ [Nelio nasceu com 4,5 kg e 61 cm]. Eu ouvia aquilo e não conseguia ver o meu bebê. Eles todos viam o meu filho, viram que ele era grande, não conseguiam nem entender aquilo, e eu lá, sem vê-lo… [começa a chorar]
Daí, chegou alguém que levou o meu bebê para fora da sala. Eu fiquei preocupada, pensando que ele estava num ambiente de luz fraca [dentro da barriga], que aquela luz toda para ele era um choque, perguntei o que eles estavam fazendo e eles disseram que tinham que examiná-lo. Eu ouvia os gritos dele e pensei: ‘vou te achar. Está tudo bem. Eu estou aqui, não importa o que aconteça’. Fiquei repetindo esse mantra. Em algum momento, colocaram-no perto da minha cabeça, eu pude olhar dentro dos olhos dele por apenas alguns segundos, e logo depois eles o levaram embora.
Me levaram para um quarto. Nada de bebê. Fiz um teatro por tanto tempo que uma enfermeira veio e me explicou que eu precisava ser observada, mas que, se eu conseguisse apoiar minhas pernas nos calcanhares e mantê-las dobradas daquele jeito, que ela me levaria até a estação neonatal.
Fiz força até conseguir levantar as pernas, mas não tinha ninguém que eu pudesse chamar. Finalmente, a enfermeira viu que eu consegui e ligou para o berçário.
Fiquei super feliz. Quando cheguei ao andar onde estava o Nelio, o Marco veio ao meu encontro, sozinho. Ele começou a chorar e disse que tinham levado o bebê para a neonatologia [chora novamente]. Dei minha camiseta do parto caseiro para o Marco levar para o Nelio sentir meu cheiro [começa a soluçar].
O Marco me disse que tiravam a camiseta do berço. Eu não aguentava mais. Liguei para a minha mãe e só conseguia chorar. Mas, daí, ela me disse: ‘Mandy, eles não tem uma cadeira de rodas nesse hospital?’
Vieram e disseram que eu tinha tido um parto difícil, que eu tinha que descansar, que dormir. ‘Eu não quero dormir, quero o meu bebê!’, gritei. Foi só então que eles perguntaram: ‘Mas você não viu seu filho ainda?’ Pedi uma cadeira de rodas. Demorou uma eternidade. Acho que umas cinco horas. O Nelio nasceu por volta do meio-dia e eu só o vi pela primeira vez no final da tarde.
‘Eu não quero dormir, quero o meu bebê!’, gritei. Foi só então que eles perguntaram: ‘Mas você não viu seu filho ainda?’
Fiquei desolada porque, no berçário, os bebês estavam todos só de fralda. O ambiente é aquecido, mas me cortou o coração ver meu filho só de fralda. Peguei o Nelio no colo. Há uma foto de quando o segurei pela primeira vez, mas dá para ver que eu simplesmente não conseguia me alegrar. Era só choque. Eu estava totalmente apática, nem lembrei de colocá-lo no peito. Fiquei aflita, pensando que, se os bebês ali choram, o pessoal não dá conta de consolá-los, não devem fazer muita coisa e as crianças ficam berrando.
Tive que voltar para o quarto. Tiraram a cadeira de rodas da gente. Fiquei com sede à noite, não me deixaram tomar nada, dizendo repetidas vezes que eu ainda não podia beber nada. Em algum momento, uma enfermeira me deu o suco dela, um de caixinha. Fiquei só com aquilo para beber até a manhã seguinte. Pedia água a toda hora, dizendo que estava morrendo de sede. Me perguntaram: ‘você não tem família para te trazer essas coisas?’ Fiquei perplexa. Parece que, na Espanha, é a família que cuida da parturiente. Eu não sabia.
Também não sei quanto tempo Nelio e eu ficamos separados. Falei com o Marco e disse que iria levar meu bebê para casa. O médico disse que não podíamos, eu respondi que sim e que eu assinaria tudo o que eles quisessem. A chefia veio conversar conosco. Disseram que ele tinha que ficar em observação porque o nível de glicose no sangue estava muito baixo, mas parece que isso é normal em bebês grandes. Ele tinha que ser examinado, mas na Suíça isso não quer dizer que mãe e filho precisam se separar. Na Espanha, eles separam.
Fiquei cinco dias no hospital. Teve uma hora que não queria mais que pegassem no meu filho, porque eles entravam, levavam-no para algum lugar e eu sempre tinha que perguntar para onde e por quê. Tiravam os bodies que eu colocava nele e vestiam uns fedidos do hospital – apesar de eu ter ouvido uma das funcionárias me elogiar porque ‘finalmente alguém pensou em trazer a própria roupa para o bebê’. Ninguém te ensina a trocar a fralda do seu filho, ou a roupinha. Tudo bem, o Nelio é o meu segundo filho, mas e as mães de primeira viagem?
“Pedia água a toda hora, dizendo que estava morrendo de sede. Me perguntaram: ‘você não tem família para te trazer essas coisas?’ Fiquei perplexa.”
O pós-parto
Na Espanha, logo depois do parto, te perguntam se você quer tomar um remédio caso o leite não venha imediatamente. Não existe uma preocupação em perguntar se você quer amamentar, se eles podem ajudar com a amamentação. Parece que eles acham natural as mulheres quererem tomar essa pílula.
Até existe apoio para amamentar, mas é preciso perguntar. Você só consegue apoio se realmente procura. Existe a La Liga Leche, mas nem todo mundo conhece.
Superando o trauma
Eu costumo superar rapidamente as coisas ruins que me acontecem. Já passei por muitas coisas horríveis que podem acontecer com mulheres. Fui vítima de estupro, fiz aborto dessa gravidez indesejada, já tive câncer no colo do útero. Em algum momento, ficou claro para mim que tudo isso está conectado de alguma forma. Durante o nascimento do Nelio, com aquele tratamento no hospital, revivi muito fortemente a violência, todas as coisas do passado. Não foi consciente, mas veio à tona.
“[Durante o ritual] Falei com ele sobre a gravidez e o parto e me desculpei, disse que fiz o que podia e que ele não tomasse para ele a minha dor.”
Ainda não superei totalmente. Mas tenho muita sorte. Tenho uma amiga na Suíça que viu uma foto da Luna-Malu após o nascimento do Nelio e sentiu que tinha algo de muito errado acontecendo e que ela tinha que vir nos ver. Fizemos um ritual com o Nelio, eu o coloquei na água morna para que ele tivesse a sensação de ainda estar na barriga. Falei com ele sobre a gravidez e o parto e me desculpei, disse que fiz o que podia e que ele não tomasse para ele a minha dor. Quando falei do parto, ele virou a cabeça de um lado para o outro rapidamente – como tinha feito durante as 32 horas de parto. Para mim, foi um sinal de que ele estava querendo me dizer porque ele não tinha saído. Esse ritual, para mim, foi o verdadeiro parto do Nelio.
Guest house
Existe um pré-natal na Espanha e um tratamento pós-parto também. Mas a mulher não decide nada, quem decide é o pessoal do hospital – a não ser que a mulher tenha dinheiro para pagar uma das cinco parteiras que existem no país. As grávidas nem sabem os direitos que têm, e sempre ouvem que nem podem decidir sobre o processo. A maioria não sabe onde procurar ajuda. Percebi que muitas mulheres não concordam com esse sistema, mas sentem que não tem alternativa. Uma amiga alemã, que também teve os três filhos na Espanha, me avisou quando ficou sabendo que eu estava grávida: ‘Mandy, só quero te dizer que, se você tiver o seu bebê no hospital, vai deixar seus direitos como mãe e como mulher na porta.’
A depressão pós-parto também é tabu. Ninguém fala oficialmente sobre isso.
Por isso, quero abrir uma guest house onde as mulheres possam falar sobre esses temas, esses tabus, trocar ideias, voltar a ter uma consciência sobre o que elas sabem e são capazes de fazer, sobre o que é ser mulher. Para mim, mulheres são criativas, intuitivas, sociáveis.
A guest house, que quero fazer sem cobrar nada, não será um lugar para as pessoas ficarem tristes o tempo todo. Claro que se pode colocar tudo o que é ruim para fora, mas quero que seja gerado um apoio mútuo entre as mulheres, para que elas possam dividir suas dúvidas e seus traumas.
O objetivo maior é que as mulheres venham antes do parto, que elas tenham acesso a informações, que elas possam decidir tudo o que diz respeito ao parto, ao nascimento. Ou que possam levar uma doula para o parto, para que tenham alguém ao lado, no hospital, que diga: ‘Parem. Tudo tem limite. Coloquem-se ao lado dessa mulher e trabalhem com ela, não contra ela.'”
Caso de alemã não é exceção
Mandy não parece ser a única a se queixar do tratamento dado às gestantes e parturientes na Espanha – apesar de sua experiência não ser regra geral. No início deste mês, uma mulher denunciou diante do Tribunal Europeu de Direitos Humanos um “tratamento vexatório” durante a cesárea que sofreu – e à qual nunca consentiu. Leia aqui a matéria do jornal espanhol El País sobre o caso (em espanhol).