Por Renate Krieger

Um misto de saudades antecipadas e alívio tomou conta de mim quando me dei conta, esta semana, de que a passagem da nossa pequena família nômade pelo Marrocos está chegando ao fim. Por isso, antes de desbravarmos o nosso próximo destino – Portugal – resolvi listar algumas experiências no país do norte africano, com todos os seus altos e baixos.

Motor-home

Adoro:

– Levar a casa junto para viajar. Tudo o que preciso está no nosso colossal motor-home de sete metros de comprimento. Temos um porta-malas que não é chamado de garagem à toa: guarda as ferramentas do marido, sua prancha de surf, o patinete da filha mais velha de quase três anos, o carrinho de bebê da mais nova (que tem dez meses), uma caixa com papinhas e roupas de bebê, outra caixa com brinquedos para variar com as crianças, o tapete que colocamos na frente do veículo para as crianças brincarem quando estamos parados, uma churrasqueira portátil e, além de outras coisas que não me lembro agora, as lembranças compradas durante a viagem.

Mesa dobrável pronta para viajar
Mesa dobrável pronta para viajar

– Também valorizo o fato de termos conseguido comprar um veículo com banheiro. Não é pelo chuveiro, que utilizamos raramente por darmos prioridade para a ducha dos campings onde paramos, mas pelo fato de podermos fazer um xixi ou durante a viagem ou à noite, sem ter que sair do carro.

Não tem nada de romântico ter que sair no frio quando se está apertado e se amamenta à noite. Fora que, quando não paramos num camping e escolhemos dormir num descampado, não temos que procurar lugares para enterrar as ‘evacuações’.

Aprendi:

– Mais intensivamente que quando morava no Egito, que o ser humano não precisa de muito para viver. E no Marrocos essa máxima é muito verdadeira. Quando fazemos compras, adquirimos apenas o que precisamos para alguns dias – senão estraga. Vale para legumes, frutas, ovos, carne. Isso permite um melhor planejamento das refeições e menos desperdício.

Curiosamente, também é um comportamento que vale para os sacos plásticos, proibidos no Marrocos há alguns anos. Economiza-se as sacolinhas trazidas da Europa. Nós fizemos um lixo para secos e outro para restos (‘bio’), e sempre reutilizamos as sacolas.

Lavou, secou, guardou
Lavou, secou, guardou: nada fica para depois na vida sobre rodas

– E economizamos água para lavar louça, escovar dentes, lavar as mãos. Como sempre temos que encher o tanque d’água, vale muito planejamento na hora de viajar e saber que talvez no dia seguinte não paremos num camping. É uma boa maneira de ensinar às crianças também, especialmente à mais velha.

– Outro aspecto importante de viajar com a ‘casa nas costas’ é não deixar nenhuma tarefa cotidiana para depois. Secar e guardar a louça, por exemplo, é uma obrigação que me irritou um pouco no início, mas que realmente facilita a vida e nos libera para aproveitar melhor o dia.

Não gosto:

– De não poder me espreguiçar na cama, apesar de termos um belo leito de 2 metros de comprimento por 1,40 de largura. Mas não dá para colocar a mão para cima e é difícil acalmar a bebê à noite, algo que faço sentada e balançando os braços em vez de me levantar para niná-la (adeus, costas!). Também sinto falta de dormir com o marido, que fica com a filha mais velha na tenda em cima do carro. Não é minha situação preferida, mas foi a solução encontrada porque ainda amamento minha bebê mais nova.

– Também não gosto de cozinhar com as crianças dentro do motor-home. Todas aquelas imagens aterrorizantes de acidentes domésticos me vem à mente com maior intensidade. Na medida do possível, quando um esta cozinhando, o outro entretém as crianças – do lado de fora do carro ou com alguma brincadeira na parte de trás do veículo, onde fica a cama.

Marrocos

Adoro:

– As paisagens e a infraestrutura do país no que diz respeito a turismo. Os campings são muito baratos (uma média de dez euros por noite, mas muitas vezes é menos que isso) e, apesar de um ou outro ser sujo (não consegui usar o banheiro em Essaouira, por exemplo), a maioria é bem administrada e tem chuveiros quentes, água potável e às vezes até máquina de lavar (apesar de termos desenvolvido a nossa própria, usando um garrafão onde colocamos a roupa com água e detergente enquanto viajamos).

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Laguna no Paradise Valley, sudoeste do país: uma entre muitas paisagens

As estradas que percorremos também são de boa qualidade, especialmente as RNs (Routes Nationales). A única vez que tivemos que prestar bastante atenção foi durante a passagem pelo Atlas, vindo de Taroudannt (sul) para Marrakech. Deu medo e vertigem, mas vimos ônibus e outras caravanas passando, e conseguimos também.

As paisagens e parques naturais são de tirar o fôlego. Mesmo locais como Erg Chebbi, no deserto, encantam pela variedade de camadas de pedras, terra e areia. São muitas cores e cenários dos mais diversos, desde montanhas com neve, cachoeiras, praias com vento para surfistas até desertos e camelos pastando na beira da estrada.

As pessoas também são muito amáveis no Marrocos, especialmente no sul, onde ainda existe a filosofia da troca de favores e objetos sem intermediação do dinheiro.

 

– A gostar do “fast food” daqui, um frango na ‘televisão de cachorro’ com batatas fritas, arroz, molho, pão e eventualmente uma salada (que evito se não confio demais na limpeza do lugar). Optamos sempre por escolher restaurantes onde podemos ver como a comida é feita. Muitas casas no Marrocos, especialmente nas pequenas cidades, ainda não usam muito a geladeira para conservar os alimentos. O mesmo vale quando compramos carne. Nos açougues, se vê a carne pendurada para vender – um sinal de que é fresca.

– A negociar como os marroquinos ‘gostam’ (ou não). Normalmente e, especialmente nas grandes medinas, os vendedores, também chamados de ‘bazaristas’, jogam o preço lá em cima. Depois de um tempo viajando por aqui, a nossa impressão é de que eles querem mais ou menos a metade do que pedem.

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Estrada pelo Atlas com direito a medo de altura

Muitas vezes, chegamos a oferecer dez vezes menos o preço pedido. Algo tomado como ‘ofensa’ por muitos vendedores, que passam até uma hora argumentando que “estamos, afinal, pagando pelo trabalho dos artesãos”. Segue-se um tempo em que o vendedor faz teatro, diz para dizermos um “preço sério”, afirma que confia em nós porque temos “cara de honestos, ao contrário dos outros europeus”. A máxima costuma ser: se fechamos a cara e viramos as costas e o vendedor ainda corre atrás, é porque quer vender e vai se deixar amaciar mais um pouco. E, como citei acima, geralmente os produtos chegam à metade do preço pedido inicialmente – mas varia de acordo com o caso, o produto e a região.

– A prestar atenção quando se usa o termo “cooperativa de mulheres” (veja abaixo).

Não gosto:

– Muito da comida que encontramos em restaurantes, especialmente os turísticos. Se forem ao Marrocos, evitem almoçar em locais em Essaouira. Pedem muito dinheiro para pouca qualidade.

– Da falta de opções para produtos de bebês em supermercados. Apesar de adepta da filosofia “menos é mais”, às vezes considero importante ter acesso a papinhas prontas (para caso de urgência) ou um protetor solar para bebês. Tudo isso existe por aqui, mas a variedade é pouca, os preços são altos e se fica dependente de uma ou duas marcas.

Tapete marroquino típico
Tapete marroquino típico: é preciso paciência e habilidade para negociar

– Da sujeira em alguns locais, ainda que, comparada a países como o Egito ou alguns locais de Luanda, em Angola, nem seja digna de mencionar (especialmente por causa da proibição de sacos plásticos no país). Mesmo assim, talvez por razões históricas (o lixo ‘biológico’ era jogado nos leitos dos rios), o lixo de plástico vai parar nos cursos d’água do país – uma visão que me deixou triste. Os gatos são numerosos (nas medinas foram introduzidos para dar conta dos ratos) e não sou muito amiga deles, especialmente quando se trata de viajar com crianças pequenas.

– Da mentalidade machista que ainda domina muitas esferas do país. Mais de uma vez, os homens que encontrei (especialmente atendentes dos campings) eram simpáticos, mas soltavam a odiosa frase quando ficavam sabendo que tenho duas filhas mulheres: “Insh’Allah o terceiro será um homem”. Algumas vezes dei uma resposta atravessada ou perguntava o motivo daquela observação, que a maioria não sabia responder.

– Ainda no âmbito do machismo, fiquei triste por ter bem mais dificuldade em encontrar e em falar com mulheres marroquinas. Nas lojas, restaurantes, souks e supermercados, a esmagadora maioria dos trabalhadores é homem. É muito difícil abordar uma mulher no campo, também porque elas não costumam falar francês ou até árabe (às vezes só falam o dialeto local). Tenho a impressão de que ficam muito em suas casas, cuidando dos filhos, apesar de esta não ser a realidade em todos os locais do país – certamente não em grandes centros urbanos como Marrakech, onde vi inúmeras mulheres sem o véu e andando de bicicleta e moto (algo que era tabu em Damietta, cidade onde morei no Egito).

Por isso, tomo cuidado quando se fala que os tapetes em Fez, por exemplo, vem de “cooperativas de mulheres”. No meu mundo ideal, eu queria comprar um tapete diretamente de uma mulher, sem intermediários homens que ditam os preços e negociam a venda. Para mim, seria uma garantia maior de que o dinheiro vai mesmo para a pessoa – no caso a mulher – que produz.

Crianças

Adoro e aprendi:

– Que a máxima do “não precisamos de muito para viver” seja a mais verdadeira com as minhas filhas. E que elas aprendam naturalmente coisas novas como o francês (a mais velha começou a falar “Bonjour” sem que eu o ensinasse há poucos dias, de tanto ouvir).

Antes de sair com o motor-home, tinha a preocupação de não ter uma vida muito estruturada na estrada. Mas aprendi que tudo é uma questão de organização. Por isso, a minha rotina não difere muito do dia a dia que eu tinha quando morávamos num apartamento, seja nos EUA, no Egito ou na Alemanha.

Farmácia portátil
Cabe tudo aqui: a farmácia portátil

Um dia típico de viagem, por exemplo, começa com o despertar das meninas, a mamada da mais nova, troca de roupa, café da manhã. E segue com arrumação do motor-home (fechar o botijão de gás que abastece o fogãozinho da cozinha e o aquecedor de ambiente), lavar louça (no camping ou no carro mesmo), dobrar a mesa da “sala de jantar”, arranjar as cadeirinhas de viagem das crianças no banco de trás (que também serve de sala de jantar quando estamos parados), checar se estamos com todos os documentos, se retraímos a tenda de cima, se a gaveta do banheiro está limpa e o tanque de água abastecido.

Em seguida ainda damos um lanche para a pequena e as meninas dormem quando pegamos a estrada. Ou paramos para almoçar e ainda fazemos alguns quilômetros para chegar ao destino, ou paramos no destino escolhido para aquele dia mesmo, aproveitando as pausas para comprar mantimentos ou tirar dinheiro do banco, por exemplo.

Não gosto:

– Que não tenhamos encontrado tantas crianças durante a viagem. É difícil encontrarmos famílias marroquinas ou parar tempo suficiente num lugar para fazer amizade com as famílias locais. E, nos campings, a maior parte do público é de aposentados. O que nos faz lembrar de como somos privilegiados de poder fazer essa viagem com as crianças.

– Também não gosto que toquem nas minhas filhas. Muitos marroquinos, mulheres e homens, acham que ver um bebê ou uma criança significa passe livre para tocá-la ou beijá-la. A intenção não é ruim, tenho certeza – mas ninguém nunca pergunta para os pais ou, principalmente, para a própria criança se ela quer falar um ‘oi’ ou dar um beijo numa pessoa que ela não conhece. E é difícil explicar isso por aqui.

Renate Krieger, co-fundadora do Mães no Mundo, é mãe da O., de quase três anos, e da M., de dez meses. Atualmente, a jornalista aproveita a longa licença maternidade da Alemanha – assim como a licença paternidade do marido – para viajar com ele e as crianças. A reticência inicial de criar as duas meninas na estrada, incluindo maiores dificuldades nas fases de desfralde e desmame, deu lugar a uma postura de agradecimento pela luxuosa oportunidade (tempo é luxo) e ao abraço de uma filosofia de vida cujo lema é “menos é mais”.

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