Por Cíntia Cardoso

A violência obstétrica é um dos principais assuntos das mensagens que nós, do Mães do Mundo, recebemos. A Renate já nos contou a história de uma mãe alemã que sofreu com um parto desumanizado. Também recebemos comentários de mamães de Angola que têm sofrido com maus tratos e até insultos em um momento que deveria ser tão especial.

Aqui na França, infelizmente, essas histórias também ainda fazem parte da rotina de muitas mães. Duas delas aceitaram dividir suas histórias conosco.

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Maria*, 39, teve seu primeiro bebê  em Pequim, na China. “Foi uma cesariana de urgência, mas foi tudo bem tranquilo. Só tenho lembranças boas”. O segundo parto na região parisiense, porém, foi traumático.

“Fiz o pré-natal praticamente inteiro na China. Cheguei à França apenas no final da gravidez. Entrei em trabalho de parto mais cedo que o previsto e fomos para um hospital que era o mais perto de casa. Não conhecia ninguém da equipe médica, mas não estava preocupada. Ao chegar à maternidade, eu não estava com o prontuário médico chinês, mas expliquei para as enfermeiras que, como tinha tido uma cesariana há três anos, não poderia ter o parto induzido com ocitocina ou algo do gênero. Repeti  essa informação várias vezes. Acho que até gritei, mas o pessoal do hospital me ignorou. Me mandavam ficar calma como se eu fosse uma louca histérica.

Resultado: me aplicaram a ocitocina assim mesmo. Tive contrações terríveis e uma forte hemorragia. Quase tive uma ruptura do útero. Eu e meu bebê tivemos que ficar várias horas em observação. Eu fiquei com muita raiva, mas acabei não fazendo nenhum processo contra o hospital. Fiquei muito traumatizada e chocada com a falta de tato da equipe.”

Penelope*, 37, também não guarda boas lembranças do parto em um grande hospital ao leste de Paris.

“Nunca tive frescura com médico ou com hospital. Sempre confiei muito no sistema de saúde pública da França que, tendo viajado muito, posso dizer que é um dos melhores do mundo.

Por isso, fiquei tão chocada com o meu parto.

Chegando ao hospital com fortes contrações, não tive uma recepção muito calorosa, mas não me importei muito. Fiquei lá me contorcendo com as contrações, mas tentando manter a classe e ficando quieta no meu canto.

Quando piorou muito, pedi para meu marido ir chamar alguém e pedir uma anestesia. Meu marido teve que insistir muito até que veio um médico com uma cara de má vontade e aplicou a anestesia.

A dor melhorou, mas senti uma coisa estranha. Como se a anestesia tivesse pegado de um lado apenas do corpo. Falei para meu marido ir chamar alguém.  Demorou uma eternidade para alguém voltar. Quando finalmente vieram ao quarto, foi para me levarem diretamente para a sala de parto.

Passei todo o parto com um lado do corpo com dor e  outro anestesiado. Senti cada ponto da episiotomia que, aliás, foi desnecessária.

Meu bebê era pequeno e estava tudo indo bem durante o parto apesar da anestesia meio fracassada.

Sei que a minha história não chega a ser tão dramática, mas foi uma grande decepção, principalmente porque eram outras mulheres que estavam na equipe e poderiam ter tido mais empatia.”

Esses relatos tornaram-se tão frequentes, principalmente com a repercussão em blogs, redes sociais e com a militância de grupos de direitos das mulheres, que o tema chegou, finalmente, até os ouvidos do governo francês.

A secretária de Estado encarregada da Igualdade entre homens e mulheres,  Marlène Schiappa, encomendou um estudo sobre a violência obstétrica na França no final de julho deste ano.

Atos ginecológicos desrespeitosos, falta de diálogo, ausência de explicações sobre os procedimentos para as parturientes, agressões verbais ou psicológicas são alguns exemplos do que pode ser considerado violência obstétrica.

Diante dos senadores, a ministra francesa explicitou a importância do assunto e citou a taxa elevadíssima de episiotomias na França – 75%. Para Schiappa, a questão tem que ser tratada com seriedade e urgência.

Antecipando-se a qualquer decisão do governo, a associação Fondation des Femmes elaborou um guia de aconselhamento jurídico para mães que tenham se sentido agredidas durante o parto ou para aquelas que querem justamente se proteger de violências no momento do parto.

Projeto de nascimento

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Entre as medidas propostas estão o estabelecimento do “projeto de nascimento”.

O texto elaborado pela mãe pode conter informações como a posição na qual ela gostaria de parir (na França, o mais comum é a posição ginecológica na qual a mãe se deita em uma cadeira, mas há outras possibilidades, como o parto de cócoras que é, inclusive, mais indicado para facilitar o parto), quais intervenções a mãe gostaria de solicitar (anestesia peridural, por exemplo) ou evitar (episiotomia, medicamentos para acelerar o trabalho de parto etc.).

A elaboração de um projeto de nascimento ainda é raridade na França, mas é uma prática encorajada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que já conta um número crescente de adeptas no Reino Unido.

A jornalista francesa Mélanie Déchalotte publicou o trabalho Le livre noir de la gynécologie (O Livro Negro da Ginecologia, em português) no qual ela investigou por vários meses a situação de sofrimento das mães. Nessa entrevista, a autora argumenta que o assunto ainda é tabu no país e que a iniciativa da ministra pode ajudar a melhorar o atendimento às mães.

Links úteis:

Observatório de Violências Obstétricas no Brasil: www.observatoriovobrasil.com.br

Ciane (Collectif Interassociatif Autour de la Naissance): https://ciane.net

Alliance Francophone pour l’Accouchement Respecté: www.afar.info/

*Nomes trocados a pedido das mães.

 

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